É fato que todos os advogados, ainda que neófitos, têm alguma passagem pitoresca para relatar do dia a dia da relação com a Justiça. Histórias de audiências conturbadas, de bons ou maus atendimentos nos fóruns, delegacias ou outros órgãos públicos. Muitas delas são recheadas de nulidades e salpicadas de situações que requerem do advogado, além do conhecimento jurídico, um certo traquejo para contorná-las, ou, ao menos, para minorar o desgaste do momento.
Dentro desse contexto, recentemente vivemos duas situações, negativas infelizmente, contendo alto grau de desprezo com a atuação profissional do advogado, ocorridas em competências, digamos, diametralmente opostas do nosso sistema processual. Em uma delas, a negativa de acesso aos autos pela defesa, cuja ordem emanou de um integrante da mais alta Corte do país, no Inquérito nº 4781, conhecido como o Inquérito das Fake News; o outro caso, o impedimento de acesso à defesa, oposta por um escrivão de Polícia Civil, a um mero boletim de ocorrência e depoimento dos policiais militares antes da realização do interrogatório.
Comecemos pela situação de piso, ocorrida ao final de uma noite, quando solicitados a atender um cliente, que se encontrava na Delegacia da Mulher de Curitiba, acusado de ter agredido sua esposa. Embora não seja algo absoluto, não se pode negar que boa parte das vezes os advogados sofrem certo preconceito quando defendem investigados de prática de agressão contra mulheres; o mesmo ocorre quando se trata de crime contra crianças e adolescentes. Nesse panorama é que se desenrolou o caso em apreço.
Logo no primeiro contato com o cliente, um senhor de mais de 60 anos que havia, pouco tempo antes, se submetido a uma cirurgia na próstata para a retirada de um tumor e que lhe rendeu uma incontinência urinária, verificou-se que ele havia se urinado e estava com uma das mãos algemada a um pedaço de ferro no interior da delegacia; não havia tido a oportunidade de ir ao banheiro, apesar de suas súplicas para os policiais que lá estavam.
Após breve conversa com o cliente, pediram os advogados que a família lhe trouxesse uma outra calça, posto que já passava de meia-noite e certamente a madrugada seria longa até que fosse lavrado o flagrante, pois a delegacia estava com muitas ocorrências. Perto das 3 horas da madrugada e sem nenhum sinal de início do seu interrogatório, solicitou-se aos policiais que entregassem a calça limpa e um casaco ao detido, que, apesar da idade avançada e sem registro de antecedentes, permanecia sendo tratado como uma pessoa de alta periculosidade: algemado a um cano no interior da delegacia. Um dos policiais até chegou a se sensibilizar com a situação, ali, na fria madrugada curitibana, todo urinado e algemado. Contudo, foi repreendido por outra policial, que disse que se ele, o cliente, quisesse se trocar, que o fizesse após ser interrogado. A sensação que se tem – e cremos que muitos colegas já a tiveram – é de que para alguns não bastam as penalidades previstas no Código Penal após a condenação. O escárnio e o constrangimento já são impostos na partida, já no início do procedimento investigatório.
Mas esse não é o ponto forte do nosso relato; apenas serve como pano de fundo para a arbitrariedade maior que veio a ocorrer. Pouco antes do interrogatório, isso já passado das 4 horas da madrugada, verificou-se que a sedizente vítima havia cansado de esperar sua inquirição, pelo que deixou a delegacia sem prestar esclarecimentos – e, portanto, formalizar a acusação contra o cliente; pediram os advogados, então, para ler os depoimentos prestados pelos policiais militares que atenderam a ocorrência e verificar exatamente o que havia sido registrado no respectivo boletim. Medida básica que qualquer advogado tomaria: ter ciência prévia da acusação para poder instruir o cliente para seu interrogatório. Regra básica, que tem como pressuposto lógico um direito comezinho, o de ter franqueado o acesso ao que já foi documentado.
Apesar dos abusos e constrangimentos já cometidos naquela noite, o escrivão apresentou o gran finale, transformando aquele senhor, submetido a uma situação humilhante, na personificação de Josef K., o famoso personagem de Franz Kafka, na obra O Processo, de leitura obrigatória a qualquer profissional do direito, onde se critica fortemente o autoritarismo do Estado e toda a estrutura judicial.
Munido de toda a sua autoridade – destaque-se que não participou do ato a delegada que subscreveu o termo posteriormente – o escrivão disse que não permitiria a leitura da acusação, ou seja, o que continha o boletim de ocorrência e nem o que tinham os policiais militares dito em seus depoimentos; afirmou que se os advogados ali presentes lessem essas peças, o cliente teria que ser acompanhado por outro advogado ou poderia até ser interrogado sem a presença de um defensor. A situação era dantesca. Tudo isso poderia ser passível de dúvida sobre sua efetiva ocorrência, não fosse por um detalhe: o indeferimento do escrivão restou consignado no termo de interrogatório. Diante da manifesta ilegalidade, a orientação da defesa técnica não poderia ser outra que não o do interrogado permanecer em silêncio; além disso, solicitaram-se providências administrativas na Corregedoria da Polícia Civil e criminais ao Ministério Público, pela prática do crime do art. 32, da Lei nº 13.869/19, que prevê detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa àquele que
“Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível”.
O outro caso que se passa a citar é de interesse nacional. Trata-se do Inquérito 4781, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal e, em que pese já decidido por maioria ampla do Plenário daquela Corte ser legal a sua instauração, certamente ainda gerará muito questionamento sobre sua licitude. Falamos do que se convencionou chamar de o Inquérito das Fake News. Há uma certa limitação no que se pode expor aqui sobre o conteúdo do processo, vez que ele tramita, infelizmente, sobre segredo de justiça, a despeito de alguns advogados que atuam no caso já terem solicitado a sua publicização (exatamente para que que toda a imprensa e a população tenham pleno conhecimento de seu conteúdo). Trata-se, pois, de fazer valer o princípio da publicidade, estabelecido expressamente na Constituição Federal, em seu art. 5º, LX, art. 93, inciso IX e art. 37, caput. Esse princípio ao mesmo tempo não só de resulta numa garantia às partes no processo, mas, concomitantemente, na efetivação da transparência necessária para o controle democrático da atuação do Poder Judiciário, conforme ensina Simone Schreiber.[1]
No entanto, a decretação desse segredo foi tão fortemente encarnada pelo seu relator (que foi nomeado – e não sorteado – para presidi-lo), que os próprios advogados dos investigados tiveram e ainda continuam a ter toda uma série de limitações para acessar a investigação.
Apropriado um rápido histórico acerca desse Inquérito nº 4781. Foi ele instaurado por ordem do Presidente daquela Corte, Ministro Dias Toffoli, através da Portaria GP n° 69, de 14 de março de 2019. Designou-se como relator o Ministro Alexandre de Moraes, o qual estabeleceu em 19 de março de 2019 o objeto da investigação como sendo notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que estariam a atingir a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos Ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles que têm o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado do Direito.
Segundo noticiado pelos meios de comunicação, foram várias as razões que levaram a presidência do Supremo Tribunal Federal do país a proceder dessa forma, dentre elas as ameaças sofridas pelos Ministros – as quais não estariam tendo o tratamento adequado pela Procuradoria Geral da República – e a notícia de um artigo, no qual um Procurador da República no Paraná e então integrante da Força Tarefa da Lava Jato publicou sobre o Poder Judiciário, criticando a competência da Justiça Eleitoral para julgar casos de corrupção, visto que, nas palavras do Procurador, noticiadas no site “O Antagonista”, “a Justiça Eleitoral historicamente, não condena e não manda ninguém para a prisão.”
Referido inquérito, que até hoje, transcorrido mais de ano, não veio a público em sua integralidade, mas que se diz já contar com mais de 10 mil páginas, parece investigar um número indefinido de assuntos, entre eles, inclusive, o fato envolvendo o ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que disse certa feita ter ido armado ao Supremo Tribunal Federal, com a intenção de assassinar o Ministro Gilmar Mendes. Contudo, não se sabe ao certo o que exatamente existe dentro desse inquérito.
Em 26 de maio de 2020 o relator do Inquérito 4781 determinou o afastamento do sigilo bancário e fiscal, busca e apreensão e bloqueio em redes sociais de diversas pessoas, entre eles deputados federais, influenciadores digitais e empresários (estes últimos no pressuposto de que, possivelmente, financiariam perfis que promoveriam fake news). A questão posta neste artigo não se relaciona aprofundar o acerto ou desacerto da decisão, não se discute sequer se há ofensa ou não aos direitos de expressão e livre manifestação do pensamento. O ponto é outro. Tal qual o que ocorreu no primeiro caso, onde um escrivão de polícia, fazendo as vezes de um delegado de polícia, feriu prerrogativas do advogado, o mesmo ocorreu – e ainda continua – no caso em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, no mesmo dia da operação os advogados dos atingidos pela busca e apreensão imediatamente requereram formalmente no Supremo Tribunal Federal cópia do processo e, principalmente, da decisão, posto que ela não instruiu os respectivos mandados. O decisum, e somente ele, foi disponibilizado no site daquela Corte no dia seguinte à operação. Não obstante os esforços de todos os advogados constituídos nos autos, o acesso ao processo demandou vários dias.
Nesse ínterim, foram impetrados vários Habeas Corpus visando combater a ilegalidade de não concessão de vista, valendo destacar os writs do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (HC 186492) e da Associação Nacional de Membros do Ministério Público – MP Pró Sociedade (HC 185500). Posteriormente se constatou que de fato o Ministro relator havia, dois dias após a operação, decidido por dar acesso parcial do inquérito; contudo, a burocracia, que tanto o judiciário procura combater, imperou no caso, vez que por se tratar do inquérito físico, todas as intimações dos advogados estavam e continuam sendo feitas por correio. Se não bastasse, os defensores tiveram ainda que esperar que os autos voltassem da Procuradoria Geral da República, sendo, que de fato, o primeiro contato havido com algum elemento concreto do malsinado inquérito ocorreu somente 10 dias após. Isso sem contar que durante esse período ocorreram algumas audiências para inquirição dos investigados, sobre os fatos que permaneciam sigilosos. Na prática, ocorreu a mesma situação do caso relatado na Delegacia da Mulher de Curitiba: interrogatório sem franqueamento prévio à defesa do dos elementos probatórios. Em face disso, alguns alvos do Inquérito 4781 permaneceram em silêncio.
O problema não se findou por aí. Com surpresa, os vários defensores que atuam no caso verificaram que não foi disponibilizado o inquérito em si, mas, sim, uma parte pequena, constituída basicamente por documentos selecionados, de pouca importância, que passaram a formar o denominado Apenso 70. Da análise do referido apenso, constatou-se a ausência de vários relatórios, que foram expressamente citados na decisão do relator, que decidira então pela busca e apreensão, quebras de sigilos bancário e fiscal e bloqueio (indevido) de perfis dos investigados nas redes sociais. De fato, por ocasião da imposição das cautelares, o relator fez expressa referência a esses documentos (relatórios), os quais não estavam no Apenso 70.
Assim, foram requeridos os documentos que foram a base fundamental para a decretação das medidas em comento. Invocou-se no pleito, como é curial, não só o Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei n° 8.906/94, art. 7°, incs. XIII, XV e XXI), como também a Súmula Vinculante n° 14 do STF, a qual estabelece que “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
O pedido foi indeferido ao argumento de que haveria ainda diligências pendentes de realização ou ainda em curso.
De fato, a jurisprudência tem temperado e retirado o caráter absoluto de um direito de acessar todo e qualquer procedimento investigatório. Nesse sentido, vale citar a Reclamação nº 29.958, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, onde restou consignado que o direito do defensor de acesso aos autos esbarra em diligências ainda em andamento. Há nisso uma certa subjetividade e falta de precisão no que exatamente consistiria o conceito de diligências em andamento. Por diligências em andamento, por óbvio, não se pode confundir investigação em curso. O que se pode compreender como razoável, que necessariamente não deva ainda ser acessível ao investigado e seu advogado, é aquela diligência que, descoberta a sua existência, poderá vir a ser frustrada seu resultado, posto que ainda não finalizada. Exemplo disso é a interceptação telefônica, pois, sabendo o investigado que está sendo monitorado, lógico que irá cessar suas comunicações; outro exemplo é o agente infiltrado, com a finalidade de descobrir crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes (art. 190-A, da Lei n° 8.96/90), bem como também a infiltração de policial em crimes praticados por organização criminosa (art. 3°, VII, da Lei n° 12.850/13).
Deveras, tendo havido no bojo do referido inquérito – que tramita desde seu nascedouro em sigilo e onde inclusive foi determinada a censura prévia da Revista Crusoé e do site O Antagonista – a decretação das cautelares de busca e apreensão de dispositivos eletrônicos, em especial telefones celulares, quebra de sigilos bancário e fiscal e, para o espanto da comunidade jurídica, de perfis nas mídias sociais, a conclusão lógica é de que os relatórios citados na decisão constituem prova já realizada. Prova já encartada aos autos, tanto que foram utilizadas para a promoção de medidas invasivas.
Portanto, a menos que num futuro incerto se demonstre o oposto, com a publicização da investigação, ou ao menos disponibilização às defesas, as provas que materializam ditos relatórios constituem-se atos de investigação finalizados e concluídos. Não é demais ressaltar que a fase ostensiva da operação (rectius: as buscas e apreensões) foram em maio de 2020, passados, portanto, meses sem que nenhum advogado tenha tido conhecimento das provas que alicerçaram o decisum do relator.
Amplamente noticiado que a decisão de bloquear os perfis dos investigados, inclusive no exterior, sofreu relativa resistência das redes sociais, em especial do Facebook. No entanto, a ameaça de penas de multa altíssimas e até a prisão do seu presidente no Brasil, fizeram com que a ordem fosse cumprida. E os processos, ou parte significativa deles, de interesse direto da defesa, continuam inacessíveis. Na prática, as defesas continuam às escuras, sem poder ter a real dimensão das provas (no pressuposto de que de fato há algo de concreto). Não há, nesse panorama, como exercer de fato uma defesa eficaz. Como bem apontam Alberto Zacharias Toron e Alexandra Lebelson Zafir, “Advogados cegos, ‘blind lawyers’, poderão, quem sabe, confortar afetivamente seus assistidos, mas, juridicamente, prestar-se-ão, unicamente, a legitimar tudo o que no inquérito se fizer contra o indiciado.”[2]
O ponto nevrálgico é que a decisão da busca e apreensão, bloqueio e quebra de sigilos, baseia-se em provas (relatórios) já encartadas ao processo, que não poderia por essa razão serem sonegadas ao conhecimento dos atingidos pelas medidas impostas. Tomando por base o magistério de Paulo Rangel, “Por conclusão, os princípios da verdade real e da igualdade das partes na relação jurídico-processual fazem com que as provas carreadas para os autos pertençam a todos os sujeitos processuais, ou seja, dão origem ao princípio da comunhão das provas.”[3]
O postulado da comunhão das provas é bem explorado em diversas decisões do Supremo Tribunal Federal, tendo no decano da Corte, Ministro Celso de Mello, a melhor expressão de sua importância. Sua excelência, na Reclamação n° 18399, com maestria peculiar ensina que “a prova penal, uma vez regularmente introduzida no procedimento persecutório, não pertence a ninguém, mas integra os autos do respectivo inquérito ou processo, constituindo, desse modo, acervo plenamente acessível a todos quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de persecução penal por parte do Estado.”[4]
Os tais relatórios apenas deixaram de constar do Apenso 70, que constitui de peças as mais esparsas possíveis, sem uma ordem clara, selecionadas sem um critério claro. Mas é fato que tais relatórios, omitidos nas peças entregues aos inúmeros advogados do feito (visto que também são inúmeros os investigados), certamente integram o Inquérito das Fake News, que se diz possuir mais de 10.000 páginas. O fato de estarmos em fase de investigações, e não de ações penais propriamente ditas, não deslegitima a necessidade da atuação da defesa por advogado. Como bem lembrado por Carlos Hélder Carvalho Furtado Mendes, Marcos Eugênio Vieira Melo e Tiago Bunning Mendes, “a efetivação do direito de defesa na fase de investigação é um dos passos necessários para uma investigação mais democrática”.[5]
O conhecimento sobre dois casos, um da Delegacia da Mulher de Curitiba e outro do Supremo Tribunal Federal, ocorridos ainda nesse fatídico ano de 2020, servem para bem ilustrar que ilegalidades jurídicas são cometidas em qualquer lugar, independentemente da posição de seus autores. Cotidianamente, por esse país de proporções continentais, infelizmente, não é surpresa para a maioria dos advogados e serve bem para ilustrar que estamos retrocedendo no campo da violação aos direitos da defesa. O exemplo que vem de cima, pode ser para o bem ou para o mal. Se a mais alta Corte de Justiça do Brasil demora semanas para dar acesso aos autos, e quando o faz, seleciona as peças, não ofertando exatamente aquilo que seria o essencial e que foi a base para decisão de busca e apreensão e outras medidas, o que se esperar de outras autoridades, espalhadas pelos rincões do Brasil?
Os exemplos mostram as batalhas diárias que são colocadas a nós, advogados, em situações que a princípio deveriam ser simples e não necessitariam energia alguma: ter ciência da acusação e das provas coligidas.
Chegamos a um ponto que, como disse Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay:
“Para nós, advogados, exercer a advocacia passou a ser também fazer o enfrentamento político. Não a política partidária, mas a defesa da Constituição. A advocacia vive e sobrevive dentro do Estado democrático de Direito e dele depende, pois há de exercer seu papel indispensável à administração da Justiça sempre com fiel observância à lei e à Constituição. E não se trata de mera opção profissional! É um dever, que impõe ao advogado grande comprometimento com toda e qualquer luta contra arbitrariedades e violências às liberdades, aos Poderes da República, ao devido processo legal, ao direito de defesa.”[6]
A advocacia, notadamente a advocacia criminal, é uma atividade de resistência, contra os abusos dos Estado e seus agentes, em quaisquer níveis. Aquele que se presta ingressar nas trincheiras da defesa da liberdade, do respeito ao devido processo legal, contra a tirania e o autoritarismo, jamais pode se esquecer de Sobral Pinto, o advogado dos advogados, que imortalizou a frase de que “A advocacia não é profissão de covardes”.
De nada adianta termos leis e mais leis assegurando direitos à defesa, como a recente Lei n° 13.869, de 5 de setembro de 2019. Magistrados e membros do Ministério Público devem compreender que a advocacia, notadamente a defensiva, necessita ser respeitada, não podendo, ainda que em um pensamento inconfesso, ser entendida como um estorvo ao processo ou à investigação. Marta Saad, com muito discernimento e olhar crítico, já anotou e notou que “a Constituição vem sendo reiteradamente interpretada de forma a restringir as garantias constitucionais lá escancaradas, reduzindo-se a nada o direito de defesa (art. 5º, LV) e o direito à assistência de advogado (art. 5º, LXXIV, arts. 133 e 134), já na persecução preparatória ou prévia”[7] Convém lembrar que a atual Constituição, nas palavras do Ministro Luís Roberto Barroso, “é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de direito”[8].
Bem observou o advogado Leônidas Ribeiro Scholz, em artigo que merece atenta leitura, que “O grande desafio da advocacia criminal no Brasil reside em lutar incansavelmente pela observância do devido processo legal, que não é favor, não é indulgência do Estado; é o estrito cumprimento da legislação, que ele próprio, Estado, editou.”[9]
Parafraseando o Ministro Marco Aurélio, que asseverou que “são tempos estranhos, muito estranhos”, ao se referir à conclamação da sociedade para os protestos do ano passado, realmente estamos passando por tempos estranhos. O Brasil, que avançou nas décadas passadas, no rumo da democracia plena, vê, vez ou outra, pinceladas de autoritarismo, e de onde jamais poderia se esperar. Interpreta-se a Constituição Federal de forma a renegar o óbvio; tudo é relativizado e entendimentos são modificados da noite para o dia, desnudando um país sem segurança jurídica.
Mais do que nunca a advocacia se faz necessária. Advocacia respeitosa, mas não subserviente; ética, mas não acovardada. Jamais esqueçamos de Ruy Barbosa: “O advogado pouco vale nos tempos calmos; o seu grande papel é quando precisa arrostar o poder dos déspotas, apresentado perante os tribunais o caráter supremo dos povos livres.”.
Referências
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
CASTRO. Carlos de Almeida Castro. É a Constituição, estúpido! diz Kakay. Sítio “Poder 360”, publicado em 7/8/20. https://www.poder360.com.br/opiniao/justica/e-a-constituicao-estupido-esbraveja-kakay/
MENDES, Carlos Hélder Carvalho Furtado. MELO, Marcos Eugênio Vieira. MENDES, Tiago Bunning. A Lei 13.245/2016 e a efetivação das prerrogativas do advogado na investigação criminal: garantia constitucional ao direito de defesa na fase preliminar. Artigo publicado na RBCCrim n° 159 (setembro 2019).
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8ª ed., 2004, Lumen Juris.
SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais (Coleção Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim Canuto Mendes de Almeida, v. 9).
SCHOLZ, Leônidas Ribeiro. “Desafio da advocacia criminal no Brasil” artigo publicado no Boletim IBCCRIM nº 207, fevereiro de 2010, p. 13. TORON, Alberto Zacharias.
SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas Profissionais do Advogado, p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora.
SCHREIBER, Simone. Notas sobre o princípio da publicidade processual no processo penal. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, 2013.
[1] SCHREIBER, Simone. Notas sobre o princípio da publicidade processual no processo penal. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 36, 2013, p. 137.
[2] TORON, Alberto Zacharias. SZAFIR, Alexandra Lebelson. Prerrogativas Profissionais do Advogado, p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora.
[3] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8ª ed., 2004, Lumen Juris.
[4] Fonte cit. Os destaques são do original.
[5] MENDES, Carlos Hélder Carvalho Furtado. MELO, Marcos Eugênio Vieira. MENDES, Tiago Bunning. A Lei 13.245/2016 e a efetivação das prerrogativas do advogado na investigação criminal: garantia constitucional ao direito de defesa na fase preliminar. Artigo publicado na RBCCrim n° 159 (setembro 2019), p. 286.
[6] CASTRO. Carlos de Almeida Castro. É a Constituição, estúpido! diz Kakay. Sítio “Poder 360”, publicado em 7/8/20. https://www.poder360.com.br/opiniao/justica/e-a-constituicao-estupido-esbraveja-kakay/
[7] SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais (Coleção Estudos de Processo Penal Porf. Joaquim Canuto Mendes de Almeida, v. 9), p. 200.
[8] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 492.
[9] SCHOLZ, Leônidas Ribeiro. “Desafio da advocacia criminal no Brasil” artigo publicado no Boletim IBCCRIM nº 207, fevereiro de 2010, p. 13.