Várias teorias objetivas e subjetivas tentaram explicar a diferença entre a fraude civil da penal. Mas nenhuma teve sucesso em razão da ausência de argumentos científicos que convençam.
Em verdade, a ilicitude é uma só. A questão é apenas valorativa. Já se tem compreendido que a sanção penal destina-se, via de regra, para os casos em que a ofensa for de maior vulto, que mais gravemente atentem a um interesse social.
Penso, entretanto, que a melhor solução para se compreender quando estaremos diante de uma fraude penal, e não meramente civil, é identificar a existência de uma intenção deliberada e antecedente de não concretizar a obrigação do agente que participa do negócio. Ou seja, a intenção em não cumprir com o prometido quando da realização do negócio. A isso chamamos de dolo pré-ordenado.
Portanto, quando o intuito já existia anteriormente ao negócio, o caso é de dolo penal, caracterizando, pois, o delito do art. 171, do CP. Nelson Hungria é preciso ao afirmar que “Há quase sempre fraude penal quando, relativamente idôneo o meio iludente, se descobre, na investigação retrospectiva do fato, a ideia preconcebida, o propósito ‘ad initio’ da prestação do equivalente econômico.” (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Cód. Penal, vol. VII, 4ª ed., p. 127. Apud RTJ 100/602.). E completa Julio Fabbrini Mirabete, citando a jurisprudência, que “Tem-se entendido que há fraude penal quando o escopo do agente é o lucro ilícito e não o do negócio (RT 423/344). Isso porque a fraude penal pode manifestar-se na simples operação civil, não passando esta, na realidade, de engodo fraudulento que envolve a espolia da vítima (RT 329/121)” (Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. arts. 121 a 234 do CP – 23ª ed. – São Paulo: Atlas, 2005 – pág. 304.).
Segundo De Plácido e Silva fraudar é o engano malicioso, ou a ação astuciosa de má-fé, para ocultação da verdade ou fuga ao cumprimento do dever. E conclui: “Assim, a fraude sempre se funda na prática de ato lesivo a interesse de terceiros ou da coletividade, ou seja, em ato onde se evidencia a intenção de frustrar-se a pessoa aos deveres obrigacionais ou legais” (SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro – 2005 – p. 637).
A jurisprudência coaduna com a doutrina quanto à ocorrência de crime de estelionato, quando há dolo preordenado, afastando, portanto, a ideia de mero inadimplemento contratual. Com acerto já se decidiu que “Fica caracterizado o estelionato, decorrente do inadimplemento de contrato de compromisso de compra e venda em face da não entrega do imóvel no prazo estipulado, quando a manifestação do dolo do promitente – vendedor for preordenada, manifestando-se através de um ardil como meio necessário a conduzir a vítima em erro e respectiva obtenção de vantagem ilícita, hipótese que diferencia tal crime de mero descumprimento de uma obrigação civil.”( RT 741/684.).
Alberto Silva Franco, no RHC 288.129, do TACRIMSP, citando o jurista italiano Gaetano Foschini, bem cita o fato de que, ainda que idôneo o meio, haverá o estelionato, quando analisada a intenção pré-ordenada do agente. Com efeito, anotou o jurista paulista que “Ninguém desconhece que o delito e contrato não se situam sempre em posições antitéticas. Não raro, o contrato se presta para prática do delito que dele não é uma consequência, mas nele está corporificado, ínsito. Com razão, Gaetano Foschini observa que, nesse caso, ‘o delito é a própria essência do contrato, enquanto, reciprocamente, o contrato não é senão o corpo de delito’ (‘Delito e contrato’, in Reati e Pene, p. 5). O que, então, permitirá afirmar que o contrato não foi a instrumentalização do delito? Somente um voltar ao passado, uma retrospecção dos fatos que conduziram ao contrato, propiciará a identificação da ocorrência ou não do ilícito penal. Se o agente alimentava, antes mesmo de aperfeiçoar formalmente o negócio jurídico, a ideia de não honrá-lo, se o inadimplemento contratual foi o efeito de um pré-constituído propósito fraudulento expresso através de artifícios aptos a surpreender a boa-fé alheia, não há duvidar que o contrato nada mais foi do que a fraude de que o agente lançou mão para induzir a vítima em erro e dela obter proveito ilícito, em prejuízo de seu patrimônio. E isto preenche, sem dúvida, os elementos de composição do tipo do estelionato.” (RHC 288.129, do TACrimSP – voto de Silva Franco. Precedente citado por Alberto Silva Franco. [et al.]. Código penal e sua interpretação jurisprudencial, vol. 1, tomo 2: parte especial. 6ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 2675.).
Partindo para o campo do exemplo, tomemos por base aquele agente que procura uma instituição financeira, e contrai um empréstimo, que deverá ser pago em 50 parcelas. Já na primeira parcela deixa de pagar, sem que para tanto tenha ocorrido algum evento extraordinário (v.g., incêndio no seu estabelecimento comercial ou fabril, enfermidade grave na família que tenha acarretado gasto significativo, etc.). Nesse caso, evidente estará a intenção de auferir, criminosamente, com o valor do contrato, sabendo de antemão que nada será pago.