A Constituição Federal de 1988, na corrente dos sistemas constitucionais modernos, deu ao meio ambiente não apenas o status de matéria constitucional, mas destinou um capítulo específico para o tema e estabeleceu, no §3º do art. 225, “mandato expresso de criminalização das condutas lesivas ao meio ambiente”[1].
Pois bem. Atendendo a vontade do constituinte foi elaborada a Lei 9.605/98, que unificou grande parte das infrações penais, dando fim à insegurança jurídica preexistente no tocante à infinidade de leis esparsas que se prestavam a tutelar o ambiente.
Ocorre que referido instrumento legal, conforme veremos adiante, atendendo ao clamor do populismo penal, acabou por transformar a tutela penal em instrumento de primeira ratio, contrariando os princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e da insignificância. É justamente aqui que reside a crítica do presente artigo.
Essa transformação pode ser atribuída à metodologia empregada pelo legislador ordinário, que promoveu uma administrativização do direito penal, limitando-se a refletir as condutas administrativamente ilícitas, atribuindo sanções de caráter penal.
Nesse sentido importa lembrar que esse método não é de todo mal; isso porque é inevitável a inter-relação entre os ramos do direito, porém gera grande confusão quando aplicado de forma equivocada. O legislador penal deve (ou ao menos deveria) se reger pelos princípios da intervenção mínima e da necessidade, autorizando a mobilização da esfera penal apenas em última instância. Não é o que ocorre no caso da chamada Lei de Crimes Ambientais, onde quase todas as condutas administrativamente ilícitas encontram o seu reflexo penal.
Um exemplo que ilustra a problemática em discussão é o art. 60 da Lei 9.605/98. O aludido tipo penal abarca uma série de ações que, se praticadas pelo sujeito ativo sem a devida licença ambiental de órgão competente, ou contrariando dispositivos legais pertinentes, constituem crime. Vejamos:
“Art. 60. Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.”
As condutas elencadas pelo tipo penal supracitado encontram reflexo direto no art. 66 do Decreto 6.514/08. Confira-se:
“Art. 66. Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar estabelecimentos, atividades, obras ou serviços utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, em desacordo com a licença obtida ou contrariando as normas legais e regulamentos pertinentes:
Multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais).”
Essa similitude entre o tipo penal e o tipo infracional administrativo provoca certa confusão quanto à necessidade de demonstração do dolo do agente infrator no momento de aplicação da norma, além de infringir o princípio constitucional do ne bis in idem, ocorrendo a dupla imposição sancionadora em situação com tríplice identidade (fato, sujeito e fundamento).
Nesse sentido merece destaque a brilhante crítica tecida por Miguel Reale Júnior:
“A defesa imprescindível do meio ambiente não autoriza que se elabore e que o Congresso aprove lei penal ditatorial, seja por transformar comportamentos irrelevantes em crime, alçando, por exemplo, à condição de delito o dano culposo, seja fazendo descrição ininteligível de condutas, seja considerando crime infrações nitidamente de caráter apenas administrativo, o que gera a mais profunda insegurança.”[2]
Conforme se extrai dos ensinamentos basilares do Direito Penal, o mesmo deve apenas se preocupar com a proteção dos bens mais importantes e necessários à vida em sociedade[3]. Em outras palavras, o Direito Penal só se mostra aplicável quando a pena se apresentar como o único e último recurso para a proteção do bem jurídico.
Diante disso não se pode aceitar com bons olhos uma atuação do Estado no sentido de atribuir responsabilidade penal para uma conduta à qual as demais esferas de responsabilização já foram suficientes para atingir os princípios primordiais de qualquer tutela ambiental, quais sejam, a prevenção e a reparação integral do dano.
O direito penal como subsidiário e de ultima ratio deverá intervir apenas e tão somente quando for necessária a prevenção do dano social e deve ser condicionado e vinculado a um exaurimento das demais esferas jurídicas.
É preciso existir uma lesão à bem jurídico, digna de pena. Isso quer dizer que a dignidade penal de determinada ação deve estar umbilicalmente ligada à verificação da necessidade político-criminal da punição de uma conduta, o que, no caso dos crimes ambientais, é inviabilizado pelo modo com que foram previstos os tipos penais da Lei 9.605/98.
[1] GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio. Crimes Ambientais: comentários à Lei 9.605/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 17.
[2] REALE JÚNIOR, Miguel. A Lei Hedionda dos Crimes Ambientais. Folha de São Paulo, 6/4/98.
[3] GRECCO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. p. 49.