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Crime Tributário: limitação à defesa?

13 de setembro de 2017 / Por: Beno Brandão

Embora não haja um levantamento estatístico a respeito, é sensível no meio jurídico no Estado do Paraná um aumento dos processos criminais por crime contra a ordem tributária.

Em casos sob a responsabilidade de nosso Escritório, é visível que as denúncias têm aflorado em operações que na realidade não refletem um crime tributário, já que em verdade contemplam fatos envolvendo interpretação tributária a respeito de um tema. Indicativo nesse sentido é a circunstância de que várias autuações fiscais tiveram intensa discussão na esfera administrativa. Melhor explicando, nesses processos a autuação foi mantida pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais em empate numérico de votos dos Conselheiros (3 x 3), mas foi decidido pelo voto de qualidade[1].

A existência, por si só, da falta de unanimidade da decisão administrativa deveria servir de alerta ao Ministério Público e ao Judiciário quanto a receber, sem reservas, a existência de um tributo devido.

Pois bem. Essa questão tem, infelizmente, sido tratada, no mais das vezes, com simplicidade, já que se invoca a Súmula 24 exatamente contra o contribuinte, ou melhor, contra o réu no processo criminal. Isso porque qualquer argumentação acerca da materialidade do delito esbarrará na compreensão de que a questão da exigência do tributo já restou decidida na esfera administrativa. Quando muito, tendo o contribuinte ajuizado uma ação anulatória na esfera cível, poderá tal fato redundar no máximo na suspensão do curso do feito criminal, já que se cogitará numa questão prejudicial facultativa. Nesse sentido confira-se o HC 277970/PR, do STJ, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, da 6ª Turma. Vale observar que a jurisprudência ressalta, nos moldes do precedente citado, a faculdade – e não a obrigatoriedade – do magistrado suspender a ação penal.

Retornando ao ponto que interessa, conquanto se saiba que há corrente jurisprudencial no sentido de que existência de eventual vício na constituição do crédito tributário não comporta discussão no âmbito da ação penal, devendo ser apurada em ação própria, perante o juízo cível, sobretudo em razão da presunção de legitimidade que se confere ao ato administrativo de lançamento, é certa a exceção a essa regra. Com efeito, o tribunal regional federal da 4ª região já teve oportunidade de decidir ser correta – em casos excepcionais e evidentes situações de reconhecimento do direito alegado – a possibilidade do Juiz Criminal deliberar sobre a regularidade da constituição do alegado crédito tributário.

Assim se depreende da Apelação Criminal nº 2004.70.01.006450-0/PR, da 7ª Turma do TRF 4ª, em que foi Relator o hoje Ministro do STJ, Doutor Néfi Cordeiro. Da ementa do acórdão (julgado em 18/11/08) se extrai a elucidativa passagem: “A existência de discussão sobre a existência e a exigibilidade dos tributos em tese sonegados é hipótese de questão prejudicial facultativa, do art. 93 do CPP, a determinar a suspensão do feito criminal apenas ao critério do magistrado da causa, que poderá conhecer e incidentalmente resolver a discussão dentro dos próprios autos criminais.”[2]

No mesmo sentido foi o julgamento exarado nos autos do Mandado de Segurança n° 2008.04.00.000845-9/SC, da 7ª Turma do TRF 4ª, j. em 19/02/08, também da relatoria do então Des. Fed. Néfi Cordeiro.

Há um precedente – antigo pela sua data, mas atual pela sua ideia – que merece leitura, notadamente pela similitude com a espécie:  “Penal. Processual Penal. Questão prejudicial. Art. 93 do CPP. Sonegação fiscal. Art. 1°, II, da Lei 8.137/90. ‘As questões prejudiciais que não digam respeito ao estado civil das pessoas podem ser julgadas pelo próprio juízo penal, ou serem remetidas para a esfera cível, hipótese em que ficará suspensa a ação penal (art. 93 do CPP). (…)”[3]

E tão importante é a decisão criminal que surja sobre uma questão tributária/penal, que ela prevalecerá sobre eventual sentença do juízo cível! Sobre isso há expressivo julgado do TRF 3ª, onde restou registrado o seguinte: “Havendo contradição entre as decisões do juízo penal e do juízo cível, a respeito da configuração ou não do ilícito fiscal, o sistema processual pátrio estabelece a prevalência da decisão do juízo penal, que se rege por princípios de ordem pública e pela verdade real.”[4]

Percebe-se, pois, que em situações de fácil constatação, o judiciário, na esfera de atuação criminal, pode e deve avaliar sim a ocorrência ou não do tributo, ainda que este esteja lançado administrativamente e até mesmo inscrito em dívida ativa. Assim não o fazendo estar-se-á negando ao réu o acesso à jurisdição, garantido constitucionalmente na forma do art. 5°, XXXVI, da CF, e também o direito à petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de direito, conforme prevê também a CF no seu art. 5°, XXXIV, letra “a”.

Trata-se, por óbvio, de decisão que depende de um Judiciário independente e corajoso, que faça valer a confiança do moleiro Sans-souci, quando, ao enfrentar o autoritarismo do rei Frederico II, da Prússia, que lhe queria tomar sua propriedade, disse que ainda há juízes em Berlim.

[1]              Ou seja, prevalece, em caso de empate, a decisão do presidente do Conselho, que sempre é ocupado por um representante da Fazenda Nacional. Decisões dessa ordem, decididas pelo tal voto de qualidade, estão sendo discutidas, de forma geral, no STF, através de Ação Direta de Inconstitucionalidade. Consulte-se o link: http://www.oab.org.br/noticia/55237/oab-questiona-no-stf-o-voto-de-desempate-nos-julgamentos-do-carf.

[2]              Fonte cit.; destaques meus.

[3]              TRF 4ª  – 7ª T. – Ap. Crim. n° 2001.04.01.067697-7 – Rel. fabio rosa – DJU 6/3/02, p. 2440. Precedente citado por alberto silva franco, rui stoco et all. Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial, v. 2. 2ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 1279. Destaques meus.

[4]              TRF 3ª – 2ª T. HC n° 200103000328360 – Rel. souza ribeiro – dju 9/10/02. Precedente citado por alberto silva franco, rui stoco et all. Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial, v. 2. 2ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 1281. Destaques meus.