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Abuso de Autoridade: discussão necessária

24 de setembro de 2018 / Por: BRANDÃO, Alessi. Criminologia nos 30 anos da Constituição Cidadã - novos caminhos e desafios. Belo Horizonte: Ed. D'Plácido, 2018. p. 17

O caput do art. 5º da Constituição Federal afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de raça, credo ou de qualquer natureza. Em seu inciso X previu o direito à inviolabilidade da intimidade e no inciso XII a inviolabilidade do sigilo das correspondências, comunicações telefônicas, telegráficas e de dados, salvo, no último caso, por decisão judicial fundamentada.

Justamente pelo direito à intimidade e inviolabilidade das comunicações telefônicas (e afins) previsto na Constituição, que o legislador, na promulgação da Lei nº 9.296/96[1], tomou o cuidado de ressalvar em seu art. 2º que a quebra desse sigilo somente pode ser realizada como ultima ratio, ou seja, somente pode ser violada a intimidade do cidadão quando já esgotadas todas as possibilidades de investigação.

Por sua vez, nos casos onde há denúncia anônima, o Supremo Tribunal Federal há muito entendeu que é possível a deflagração da persecução penal pela chamada denúncia anônima, desde que esta seja seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados antes da instauração do inquérito policial[2].

Ademais, entendeu que é cabível o trancamento do inquérito policial na hipótese em que iniciado unicamente com base em uma denúncia anônima, sem arealização de qualquer diligência investigatória preliminar para confirmar tal denúncia. Isso porque, conforme precedentes do STF e
STJ, em casos de delação anônima, é necessária uma apuração prévia afim de reunir um mínimo de indícios que possam corroborar o conteúdo da denúncia[3].

Portanto, nos casos em que há o binômio denúncia anônima + interceptação telefônica, faz-se necessário que sejam realizadas diligências prévias ao pedido de quebra; não se pode decretar a interceptação (seja ela qual for) sem que se tenha certeza da indispensabilidade da medida e da veracidade da denúncia apócrifa.

Assim, há muito a doutrina e a jurisprudência têm entendimento firmado de que a interceptação telefônica, telemática, e afins, que são iniciadas sem respeitada essa regra, fatalmente acabam sendo consideradas nulas, bem como as provas decorrentes da medida, com base no Princípio dos Frutos da Árvore Envenenada[4].

            Tal fato é notório e não poderia ser diferente. A regra é essa e deve ser respeitada. Tanto que a nossa própria Constituição Federal prevê em seu art. 5º, inciso LVI, que são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos. Da mesma forma, o art. 157 do Código de Processo Penal prevê a inadmissibilidade de utilização de provas ilícitas, com a determinação do seu desentranhamento do processo. Portanto, o entendimento é taxativo, não havendo possibilidade de elastecimento argumentativo no intento de salvar a prova obtida em detrimento das garantias constitucionais[5].

            Contudo, não obstante serem incontáveis os estudos sobre o tema e o firme posicionamento das Cortes Superiores de que “não se podem inferir, portanto, exceções à garantia constitucional”[6], não são poucos os processos de pedidos de quebras de sigilo realizadas pelo Ministério Público e chanceladas por Magistrados, os quais fatalmente acabam sendo anulados.

            Em recente caso ocorrido no Paraná, o Ministério Público recebeu uma notícia anônima de que estava ocorrendo uma fraude na licitação para a reforma do Tribunal de Contas do Paraná e, sem realizar nenhuma diligência, com exceção de fazer busca no Google para saber se realmente era verdade que tal certame estava ocorrendo, requereu a quebra do sigilo telefônico dos acusados, o qual foi deferido.

Seguindo a praxis nacional, em meados de 2014 foi realizada uma grande operação sobre isso; um dos personagens foi preso em flagrante, várias conduções coercitivas foram realizadas e todos os envolvidos tiveram seus nomes divulgados na imprensa. Após a finalização da investigação, foi oferecida denúncia e realizada toda a instrução processual, enquanto era travada uma batalha para que fosse reconhecida a nulidade decorrente da atitude prematura do Ministério Público, chancelada pelo Juízo de 1ª instância.

Foi pelo Tribunal correspondente concedido Habeas Corpus nº 1250537-2, da lavra do já saudoso Des. Roberto Vicente, para reconhecer a nulidade da prova, trancando a ação penal. Houve recurso ao Superior Tribunal de Justiça[7], onde o Min. Reynaldo Soares da Fonseca manteve a invalidade da interceptação e de todas as provas dela decorrentes, inclusive da prisão em flagrante de um dos acusados; o juiz de 1º grau, acatando o que foi decidido, rejeitou a denúncia pois, extraindo as provas anuladas, não havia nenhum fundamento para a persecução penal.

Em resumo, foram quatro longos anos de processo penal. Depois de todo o verdadeiro calvário para os acusados (alguns ficaram afastados durante todo esse período da sua função pública), do custo para o Judiciário e para a sociedade, uma vez que aquele cartório poderia, por exemplo, estar impedindo a prescrição de outro processo em decorrência do volume de trabalho que assola o Judiciário, poderiam o Tribunal de Justiça do Paraná e o Superior Tribunal de Justiça estarem julgando recursos criminais e não habeas corpus sobre a nulidade aventada. Enfim, depois dos quatro anos, o previsível ocorreu e toda a ação foi anulada.

Outro exemplo comum de má prática processual e, consequentemente, previsível nulidade está na violação ao art. 212 do Código de Processo Penal que determina a ordem nas perguntas para os testigos. A determinação é simples: as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente às testemunhas. Não tem segredo.

Isso porque, a inovação legislativa de 2008 veio para extinguir de vez o sistema presidencialista, onde as partes faziam as perguntas para os juízes que, por sua vez, as formulava às testemunhas. Foi a forma que o legislador entendeu para consolidar o distanciamento do papel do julgador e da acusação, garantindo assim o Devido Processo Legal[8]. A situação não parece de difícil compreensão, sendo que parte da jurisprudência considera nulidade absoluta[9] e parte nulidade sanável[10].

Contudo, mesmo sendo um cenário de pouca variação no entendimento, ainda hoje alguns Magistrados ignoram completamente a legislação, invertendo a ordem na inquirição das testemunhas. Tal situação foi objeto de recentíssimo julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (Habeas Corpus nº 111.815[11]) onde os Ministros entenderam que o reconhecimento da nulidade teria, inclusive, aspecto pedagógico[12] para a magistrada que ignorava que a segurança jurídica pressupõe o respeito ao Princípio da Legalidade, agindo como verdadeira semideusa[13] no cartório que atuava.

Esses são só dois exemplos de procedimentos ilegais realizados de forma intencional por agentes públicos (promotores e juízes). E como fica a responsabilidade dos envolvidos, que mesmo sabedores da jurisprudência acerca do tema, insistiram em adotar fórmula contrária? Lembrando que cabe ao Ministério Público agir dentro da legalidade, respeitar os procedimentos investigatórios determinados pela legislação brasileira e, principalmente, respeitar as garantias constitucionais dos cidadãos.

E qual a responsabilidade do Magistrado que, sabendo da ilegalidade entranhada no pedido, deferiu essas quebras de sigilo, medidas coercitivas e prisões, mesmo ciente do grande risco de serem reconhecidas essas ilegalidades e serem anulados os referidos processos?

E da Magistrada que ciente da alteração da lei, deliberadamente inverte a ordem processual (no leading case e, certamente, em todos os casos que atua), ressuscitando o sistema presidencialista[14] nas audiências?

Pois bem, passemos para uma análise, sempre no plano das ideias, tendo em vista que a conclusão sobre a conduta praticada pelos agentes públicos mencionados demandaria uma avaliação administrativa, antes da criminal.

Quanto à quebra do sigilo telefônico, parte da doutrina[15] entende que se trata da prática do crime previsto no art. 10, da Lei nº 9.296/96, que prevê ilícito na prática da interceptação das comunicações telefônicas, de informática ou telemáticas sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

Entendo que na discussão proposta – quebra de sigilo ciente da ausência dos requisitos legais – a conduta que mais se amoldaria à espécie seria o crime de abuso de autoridade[16]. Isso porque a Lei nº 4.898/65, que disciplina o Direito de Representação e o processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal, classificou, em seu art. 5º, como autoridades quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração. Elencou como abuso de autoridade, nos seus arts. 3º e 4º, os atestados às liberdades de locomoção, consciência, crença, livre exercício de culto religioso, associação, direito ao voto e o exercício profissional. Garantiu a incolumidade física do indivíduo e a inviolabilidade do domicílio. Finalmente, o que nos interessa para a discussão, tipificou como atentado ao sigilo da correspondência crime de abuso de autoridade.

Aqui um comentário. A Lei acima citada, assinada por Castello Branco, primeiro Presidente da Ditadura Militar instaurada no Brasil em 1964, não menciona “crime” de abuso de autoridade, dando a nítida sensação que o legislador tentou impor um pouco de responsabilidade penal aos envolvidos, mas a palavra “crime” soava muito pesada, já mostrando os tempos que se avizinhavam. Os arts. 3º e 4º traziam as 19 situações que mais preocupavam à época.

Recentemente, a questão do abuso de autoridade voltou à baila. Infelizmente forma irresponsável, através da manobra realizada na madrugada no dia 30/11/16, quando ao votarem o Projeto de Lei nº 4.850/16, apelidado de “10 Medidas Anticorrupção”, a Câmara dos Deputados Federais promoveu mudanças e criou outro projeto de lei, atribuindo o crime de abuso de autoridade a diversas condutas.

Na época, foram inúmeras as manifestações dos agentes públicos contrários às alterações realizadas nas “10 Medidas Anticorrupção”, tendo, inclusive, os Procuradores da República da Força Tarefa Lava Jato ameaçado renunciar aos trabalhos naquela operação, caso fosse mantido o texto proposto pelos parlamentares. Sobrevieram então os Projetos de Lei nºs 280/16 e 85/17 do Senado Federal, que também dispõem sobre os crimes de abuso de autoridade e alteram, dentre outras, a Lei nº 9.296/96 (que trata das Interceptações Telefônicos e afins).  Então o Procurador Geral da República da época – Dr. Rodrigo Janot – apresentou anteprojeto sobre o tema, cuja grande preocupação era garantir que a divergência na interpretação legislativa não fosse configurada crime, sob a justificativa:

Por outro lado, o anteprojeto procurou evitar a tipificação da hermenêutica. Isso porque, não se confunde com abuso de autoridade a aplicação da lei pelo agente público e a avaliação de fatos e provas, no exercício de sua independência funcional, com as quais não se concorde ou não se conforme, desde que as faça de modo fundamentado.

A divergência na interpretação da lei ou na avaliação dos fatos e das provas deve ser resolvida com os recursos processuais cabíveis, não com a criminalização da hermenêutica ou com atentado às garantias constitucionais próprias dos agentes políticos, que são cláusulas pétreas e pilares do Estado Democrático de Direito.

Evitou-se engessar o juiz ou o membro do Ministério Público, desamarrando-o da necessidade de adotar interpretação de acordo com a jurisprudência atual, ainda que minoritária.

Optou-se por manter a permissão para inovar. A capacidade de inovar é que evitou que ainda hoje estivéssemos aplicando os mesmos conceitos e soluções jurídicas do século XIX. As garantias e os direitos que foram reconhecidos pelos tribunais ao longo das últimas décadas, e que tiveram seu início em decisões inéditas, desbravadoras ou pioneiras de juízes de primeiro grau, não existiriam se lhes fosse castrada a possibilidade de inovar.

Também evitou-se colocar camisa de força na autoridade, obrigando-a a adotar apenas a modalidade literal de interpretação da lei. A interpretação gramatical é apenas um dos métodos internacionalmente consagrados de hermenêutica. E nem é a melhor ou mais festejada. Ao seu lado temos, ainda, a interpretação lógica, a interpretação sistemática, a interpretação histórica, a interpretação sociológica, a interpretação teleológica e a interpretação axiológica. Ao lado da interpretação literal, temos ainda a interpretação restritiva (em geral aplicável às exceções à norma) e a interpretação extensiva.[17]

Restou aprovado o texto redigido pelo Senador Roberto Requião, que traz uma junção dos projetos que tramitavam (PL nº 280/16 e nº 85/17), incluindo as questões levantadas pela Procuradoria Geral da República no anteprojeto. Remetido para a Câmara dos Deputados Federais e registrado sob o nº 7.596/17, encontra-se parado. A proposta subiu de 19 para 37 ações que poderão ser consideradas crimes de abuso de autoridade, quando praticadas com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal[18]. A divergência na interpretação da lei (grande preocupação, conforme dito), restou salvaguardada no projeto, que ainda pende de aprovação.

Eis aqui o primeiro ponto obscuro no projeto de lei. Ora, até que ponto pode haver divergência na interpretação? Pode ser considerada discricionariedade do juízo simplesmente deixar de aplicar a legislação?

O tema é espinhoso, mas precisa ser debatido. De um lado, agentes públicos afirmam que o Projeto de Lei tem motivos espúrios e que pretendem, “não apenas calar investigadores e juízes, mas paralisar investigações de criminosos do colarinho branco, especialmente aqueles que possuem poder político e que durante anos se beneficiaram de um vasto esquema de corrupção”[19]. Evidentemente que ninguém é ingênuo de acreditar que o Projeto de Lei é fundado apenas por motivos nobres, sem que se tenha qualquer intenção de “estancar a sangria”[20] havida pelas operações, em especial pela Operação Lava Jato que atingiu grandes caciques políticos.

Contudo, é no mínimo curioso que agentes públicos se insurjam sobre mudanças que trarão maior segurança jurídica para a sociedade, com a responsabilização de atitudes prematuras, iniciadas em procedimentos sabidamente ilícitos. É sui generis que haja tanto alvoroço sobre a possibilidade de serem punidos por suas atitudes e decisões. Talvez porque, conforme dito pelo brilhante Lenio Streck: juízes e procuradores não confiam… nos juízes e procuradores![21]

Fato é que o Projeto de Lei precisa ser votado. Assim como o Dr. Rodrigo Janot insistiu que não se pode punir a permissão para inovar, a inovação não pode ser às custas da violação de Direitos já consagrados pela nossa Constituição Federal. Predestinadamente, os ares de 1964 indicavam situações de excessos (as quais, como historicamente é cediço, aconteceram). Assim, respeitando a nossa memória histórica, temos a obrigação de, ao menos tentar, prever e coibir situações de excessos que acontecem na atualidade.

Voltando à discussão sobre o crime de abuso de autoridade, ao menos no plano das ideias, tendo em vista que o Projeto de Lei ainda pende de aprovação, poderiam os agentes públicos (Promotores de Justiça e Magistrado) serem responsabilizados pela quebra de sigilo sabidamente ou provavelmente ilícita? Frisando que estamos trabalhando com a conduta atrelada a probabilidade de conhecimento e não com a possibilidade. A diferença é essencial, uma vez que a probabilidade elenca maior chance de ciência da ilicitude.

Em uma análise mais literal e superficial, sim. O art. 25 do Projeto de Lei nº 7.596/17 afirma que é crime de abuso de autoridade proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito. Ainda, incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, tendo prévio conhecimento de sua ilicitude. Tal fato constituiria crime punível com detenção de 1 a 4 anos e multa.

Poderia então a Magistrada que, intencionalmente, viola o art. 212 do Código de Processo Penal, invertendo a ordem da oitiva das testemunhas e com tal ato criando nulidade no processo, ser penalizada? Tecnicamente, se verificado o vício, a sua conduta estaria tipificada no art. 34, daquele Projeto de Lei, que prevê pena de três a seis meses de detenção para o agente que deixa de corrigir, de ofício ou mediante provocação, tendo competência para fazê-lo, erro relevante que sabe existir em processo ou procedimento. Ademais, o mero capricho exigido no projeto de lei está mais que configurado quando restou demonstrado que era praxe daquela Juíza ignorar o previsto no Código de Processo Penal.

Evidentemente que, conforme dito, o tema é melindroso, demanda discussão e avaliação prática de cada caso. Aqui estamos tratando de análise literal, no plano das ideias. Isso porque a grande discussão cingiria em torno do conhecimento de meio manifestamente ilícito: seria a quebra de sigilo telefônico fundado unicamente com base em denúncia anônima uma divergência na interpretação legislativa? Poderiam os Promotores de Justiça e Magistrado se salvaguardarem na proteção prevista no parágrafo 2º, do art. 1º[22]? Poderia haver divergência sobre a interpretação de preceito constitucional? Poderiam lançar mão de argumentos como gravidade do delito para justificar tais atitudes?

De um lado teríamos os defensores do fiat justitia et pereat mundus[23], afinal, apesar da violação do Direito fundamental, no primeiro exemplo houve prisão em flagrante. Pouco importando, assim, o resultado desastroso, o previsível reconhecimento da nulidade e todo o tempo consumido numa ação que fatalmente geraria impunidade. Impunidade essa graças à imperícia dos envolvidos.

Por outro lado, além da insegurança jurídica gerada pelas decisões que afrontam os princípios basilares do Devido Processo Legal e da Ampla Defesa, há outro componente a ser colocado na balança: a prescrição. Isso porque, a atitude realizada nos exemplos acima colacionados, provavelmente (quase certamente) gerou a prescrição direta ou indireta de processos judiciais. Nos dois exemplos apresentados a nulidade era latente e foi reconhecida pelas Cortes Superiores. No exemplo sobre as interceptações, foram quatro anos de instrução no primeiro grau desperdiçados.

No segundo exemplo, verificou-se que a magistrada tinha por hábito inverter a oitiva das testemunhas, deduzindo-se, portanto, que houve nulidade em todos os processos que atuou, os quais, se seguirem o destino do exemplo, deverão ter a sua instrução refeita. Para se ter uma ideia do tempo perdido, foi oferecida denúncia na ação mencionada no ano de 2010, sendo o HC impetrado no ano de 2011. Somente sete anos após a sua ocorrência, o Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem, reconheceu nulidade e determinou o retorno dos autos para a origem a fim de que fosse refeita a instrução.

Infelizmente não foi possível localizar estudo específico sobre a quantidade de processos que são anulados nos moldes debatidos. Contudo, considerando que o número de processos que tramitam em primeiro grau[24] é muito superior ao de outras instâncias, é possível se ter uma ideia do reflexo desse “vai e vem” dos processos e dessas instruções que precisam ser refeitas. O impacto dessas nulidades se reflete também no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribuna de Justiça, já que os habeas corpus são os procedimentos campeões[25] de tramitações naqueles Cortes Superiores. Assim, não é difícil deduzir que grande parte do trabalho dos ministros que lá atuam se resume a justamente analisar e dirimir tais questões processuais.  A criminalista Vera Chemin aponta que “os constantes erros de natureza processual durante a tramitação do processo nas diversas instâncias que chegam ao STF fazem com que os ministros devolvam à instância correspondente apenas para correção, com perda de tempo”[26].

Assim resta a pergunta: os fins realmente justificam os meios? Não seria mais produtivo para o Judiciário que os juízes e promotores respeitassem as regras instrumentais, evitando uma enxurrada de habeas corpus nas Cortes Superiores e que esses processos acabem sendo refeitos/anulados? Até que ponto vai a livre interpretação do Magistrado? Pode o julgador simplesmente resolver não adotar alteração legislativa?

A meu ver, a resposta é não. Evidentemente que a sociedade como um todo está cansada da impunidade e da corrupção. Entretanto, o combate à corrupção, como dito pelo Ministro Luís Roberto Barroso, “deve ser enfrentada com seriedade, mas com moderação e proporcionalidade, respeitando os direitos da defesa, sem caça às bruxas ou vingadores mascarados. Não se trata de uma expedição punitiva, mas de uma jornada de incentivo ao bem. É preciso mudar o Brasil dentro da legalidade democrática e do respeito aos direitos humanos.”[27]

É fato que o Projeto de Lei que trata dos abusos de autoridade precisa melhorar e muito. Perder seus excessos e ambiguidades. Necessita de uma análise isenta. Que não se protejam, nem os poderosos, nem as condutas abusivas e, principalmente, que venha para evitar a contaminação pelos mesmos ares de 1964.

[1]           Que regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição Federal.

[2]           Nesse sentido: STF, HC 108.147, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJe de 31/1/13. No mesmo sentido também do STF: HC 105.484, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJe de 16/4/13; HC 99.490, Rel. Min Joaquim Barbosa, DJe de 1/2/11; HC 98.345, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 17/9/10; HC 120.234, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 26/3/14; HC 108.483, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 16/11/11; HC 84.827, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 23/11/07.

[3]           Nesse sentido: STJ, HC 199.086, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 21/5/14. No mesmo sentido, também do STJ: HC 131.225, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe de 16/9/13; HC 229.205, Rel. Min. Maria Thereza Moura, DJe de 24/4/14; HC 204.778, Rel. Min. Og Fernandes, DJe de 29/11/12; HC 137.349, Rel. Min. Maria Thereza Moura, DJe de 30/5/11; HC 83.830, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 9/3/09.

[4]           Nesse sentido: TRF1 – HC 9653 AM 0009653-07.2013.4.01.0000 – Rel. Des. Tourinho Neto. DJ. 22/3/13.

[5]           Nesse sentido é o entendimento de Ricardo Sidi, A Interceptação das Comunicações Telemáticas no Processo Penal. Belo Horizone: Editora D’Plácido, 2016. P. 282.

[6]           STF – 1ª T – HC nº 80.949/RJ – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJ. 14/12/01.

[7]           STJ – 5ª T – HC nº 351.407/PR – Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca – DJe 14/12/16.

[8]           Sobre o tema, Eugenio Pacelli e Douglas Fischer, Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. São Paulo: Ed. Atlas, 2013. P. 435.

[9]           STJ – 5ª T – RESP nº 1.259.482/RS – Rel. Min. Marco Aurélio Belizze – DJ 27/10/11.

[10]         TJRR – HC nº 100006402 – Rel. J. Graciele Sotto Mayor Ribeiro – DJ 3/9/10. Citado em Fernando Capez e Rodrigo Colnago, Código de Processo Penal Comentado.

[11]         STF – 1ª T – HC nº 111.815 – Rel. Min. Luiz Fux – DJE 9/2/18.

[12]         Termo utilizado pelo Min. Alexandre de Moraes

[13]         Termo utilizado pelo Min. Marco Aurélio: “Chego à conclusão de que se tem, nessa Vara, uma semideusa”.

[14]         Ou ditatorial, conforme dito pelo Min. Alexandre de Moraes, no HC nº 111.185.

[15]         SILVA. José Geraldo da. BONINI. Paulo Rogério. LAVORENTI. Wilson. Leis Penais Especiais Anotadas. Campinas, SP: Millennium Editora, 2010. P. 93

[16]         No mesmo sentido entende Guilherme de Souza Nucci, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2009. P. 40.

[17]         http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/MinutadoProjetodeLeideAbusodeAutoridade.pdf/view. Destaques nossos.

[18]         Conforme prevê o art. 1º, § 1º, do Projeto de Lei nº 7.569/17.

[19]         Artigo “Chamem o Ladrão”, publicado em 13/7/16 no O Globo, https://oglobo.globo.com/opiniao/chamem-ladrao-19698127

[20]         Célebre frase do Senador Romero Jucá na gravação realizada por Sérgio Machado.

[21]         Artigo “Juízes e procuradores não confiam em… juízes e procuradores!”. Conjur, 8/12/16. https://www.conjur.com.br/2016-dez-08/senso-incomum-juizes-procuradores-nao-confiam-juizes-procuradores

[22]         A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade.

[23]         Faça-se Justiça, ainda que pereça o mundo.

[24]         Segundo a pesquisa “Justiça em Números de 2017”[24], realizada pelo CNJ – Conselho Nacional de Justiça, em 2016 a carga de trabalho de um juiz de primeira instância (7.192 processos) foi quase o dobro de um colega da segunda instância (3.384).

[25]         Conforme o estudo realizado pela FGV Direito Rio, Supremo em Números, dos 9.144 processos em trâmite no STF e STF, 4,848 são Habeas Corpus. Fonte: http://www.fgv.br/supremoemnumeros/

[26]         Matéria “Um quinto dos processos no STF caducou em 2016”. Jornal Estadão. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,um-quinto-dos-processos-no-stf-caducou-em-2016,70002023440

[27]         BARROSO. Luís Roberto. A Judicialização da vida. Belo Horizonte: Fórum, 2018. P. 35.