O instituto da Cadeia de Custódia de prova, previsto no art. 158 e seguintes do Código de Processo Penal (reforçado pela Lei 13.964/19), consiste na reunião de mecanismos necessários para que as provas sejam preservadas e tenham sua cronologia e percurso registrados – desde a sua coleta até o recebimento no poder judiciário[1].
Os dispositivos inseridos quando da reforma do CPP (Art. 158-A à 158-F) vieram a pormenorizar os mecanismos, etapas e, inclusive, as formas com que os agentes públicos devem agir e procedimentos que devem seguir para que todo o meio probatório seja preservado.
Esta inovação legislativa promovida pelo “Pacote Anticrime” veio da preocupação em estabelecer “um procedimento de documentação ininterrupta, desde o encontro da fonte de prova, até a sua juntada no processo, certificando onde, como e sob a custódia de quais pessoas e órgãos foram mantidos tais traços, vestígios ou coisas que interessam à reconstrução histórica dos fatos no processo, com a finalidade de garantia de sua identidade, integridade e autenticidade”[2], com o intuito de garantir a autenticidade da prova, que “consiste na certeza de que o objeto e análise provém das fontes anunciadas e que não foi alvo de mutações ao longo de um processo, assegurando-se a identificação e a segurança da origem da informação”[3].
Nas palavras de Pacelli: “A finalidade precípua é garantir a lisura e validade das provas que serão valoradas pelo julgador, maximizando-se o devido processo legal, sob duplo vetor: a) tanto sob a ótica da necessária apuração dos fatos na sua maior inteireza; b) como também para permitir o exercício da ampla defesa e do contraditório a partir de provas e indícios que sejam considerados como válidos à luz do ordenamento jurídico[4].
Nesse sentido, cumpre destacar decisão do Superior Tribunal de Justiça que absolveu um réu pelo crime de tráfico de drogas porque as substâncias entorpecentes que foram encaminhadas à perícia estavam em um saco de supermercado fechado com um nó e sem lacre. No caso, os Ministros entenderam que “Não se agiu de forma criteriosa com o recolhimento dos elementos probatórios e com sua preservação; a cadeia de custódia do vestígio não foi implementada, o elo de acondicionamento foi rompido e a garantia de integridade e de autenticidade da prova foi, de certa forma, prejudicada.[5]”
Em situações como a que fora exposta no julgado, o prejuízo à Defesa é incomensurável, afinal “sem o devido ‘registro histórico’ do vestígio criminal, assim entendido ‘todo objeto ou material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido, que se relaciona à infração penal’ (artigo 158-A, § 3º, do CPP), desaparece qualquer garantia de sua regularidade epistêmica como fonte de conhecimento válido no processo penal”[6].
Na prática, não raro tem ocorrido a inobservância dessas regras, citando como exemplo a colheita de prova em vídeo de determinado delito, que muitas vezes é despejada no inquérito sem a necessária documentação da história cronológica da sua obtenção, ou ainda, em casos em que são colhidas provas do aplicativo de trocas de mensagem do WhatsApp, onde ocorre o manuseio direto da evidência digital por agentes policiais, seja no aparelho celular, seja pela utilização da ferramenta WhatsApp Web.
A respeito disso, inclusive, pode-se citar a decisão do STJ no RHC nº 99.375, que considerou nula obtenção de prova pelo espelhamento de conversas via WhatsApp Web, isso porque “tanto no aplicativo, quanto no navegador, é possível, com total liberdade, o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas (registradas antes do emparelhamento) ou recentes (registradas após), tenham elas sido enviadas pelo usuário, tenham elas sido recebidas de algum contato. Eventual exclusão de mensagem enviada (na opção “Apagar somente para Mim”) ou de mensagem recebida (em qualquer caso) não deixa absolutamente nenhum vestígio, seja no aplicativo, seja no computador emparelhado, e, por conseguinte, não pode jamais ser recuperada para efeitos de prova em processo penal, tendo em vista que a própria empresa disponibilizadora do serviço, em razão da tecnologia de encriptação ponta-a-ponta, não armazena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários”[7].
Assim, inegável a importância da observância dos regramentos estabelecidos pela reforma no CPP ainda em 2020. Quando o assunto é prova penal, não há uma confiança preestabelecida em relação ao vestígio colhido. Se não observadas as regras para manuseio da evidência, até mesmo de prova digital, desaparece a desejada garantia de sua regularidade como fonte de conhecimento no processo penal.
[1] CPP, Art. 158-A: “Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”.
[2] Badaró, Gustavo. Processo Penal. 6 ed. e-book baseada na 8 ed. Impressa. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. Página RB-10.34
[3] Cunha, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019: Comentários às Alterações no CP, CPP e LEP. Salvador: Editora JusPodivm, 2020. P. 179. Destacamos.
[4] PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. – 25ª ed. – São Paulo: Atlas, 2021. P. 350.
[5] HC 653.515/RJ – Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz – 6ª Turma – J. 23/11/2021 – DJe 01/2/22. Grifamos.
[6] Machado, Leonardo Marcondes. Aplicação da cadeia de custódia da prova digital. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-31/academia-policia-aplicacao-cadeia-custodia-prova-digital. Acesso em 23/6/21.
[7] STJ – 6ª T – RHC nº 99.735 – Rel. Min. Laurita Vaz – Julg. 27/11/18.