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Prerrogativa de foro: regra Suprema de competência.

18 de maio de 2022 / Por: Maria Victória Esmanhotto

A Constituição Federal de 1988 prevê, em seu artigo 102, I, alíneas “b” e “c”, as hipóteses de competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar infrações penais. Exclusivamente em casos de infrações penais comuns, será competente quando seu agente for o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional (deputados federais e senadores), seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República.

 Também será competente para julgar os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente, tendo estes cometido infrações penais comuns ou crimes de responsabilidade.

O fundamento para a existência da prerrogativa de foro é a proteção do cargo a ela vinculado, priorizando e resguardando o exercício da respectiva função. Não deve – quando usada regularmente – ser vista como privilégio pessoal de seu detentor, na medida em que não é atrelada à pessoa, e sim ao cargo que ocupa.

A lógica relacionada à prerrogativa ficou devidamente delimitada e pode ser observada de forma mais clara após o julgamento da Ação Penal nº 937 pelo STF, em 2018. O entendimento finalmente sedimentou dois pontos muito relevantes: a prerrogativa de função será aplicada (i) apenas durante o exercício do cargo e (ii) em crimes eminentemente relacionados às atividades funcionais desempenhadas pela função específica que possua o foro privilegiado.

A importância de referido julgamento repousa exatamente na concretização do entendimento de que se trata, simplesmente, de prerrogativa atrelada ao cargo. Ao deixar o cargo em específico ou praticar atos que não possuam vinculação direta com a atividade a ele vinculada, o agente não responde pela prerrogativa – na medida em que pratica ato desvinculado ao cargo, real objeto de “privilégio”.

A regra parece clara. Porém, em recente decisão publicada em 18/2/22, o STF apresentou surpreendente e inovador entendimento. Ignorando as regras de Processo Penal descritas em Lei, bem como o sedimentado entendimento jurisprudencial – tanto desta Corte, quanto dos demais Tribunais do país – o Supremo Tribunal, por maioria de votos, recebeu denúncia formulada pela Procuradoria-Geral da Replica contra o ex-deputado Roberto Jefferson.

Roberto Jefferson foi deputado federal até 2005. Os crimes pelos quais foi denunciado – todos comuns – foram praticados, em tese, de fevereiro a julho de 2021 e sem qualquer relação com o cargo ocupado por ele no passado. Tratam-se dos crimes de incitação de crime; calúnia e difamação contra o STF e racismo. Portanto, sem qualquer prerrogativa de foro.

O argumento para o recebimento da denúncia foi o de que estes crimes teriam sido investigados no âmbito do Inquérito 4.781/DF, que tramita perante o STF, em razão de investigar condutas praticadas por agentes que possuem a prerrogativa de foro. Além disso, utilizou como fundamento o princípio da economia processual e a celeridade.

A própria Denúncia oferecida pela PGR, continha a informação de que Roberto Jefferson não possui qualquer prerrogativa de foro. Nem agora, nem quando supostamente praticou as condutas denunciadas. Em razão disso, apesar de ter recebido a Denúncia, declinou a competência para processar e julgar o feito à Justiça Federal no Distrito Federal. Como já asseverou o ex-Ministro Marco Aurélio, “vivemos tempos estranhos”.

Em âmbito diverso do STF, as regras de competência determinam que a Denúncia oferecida perante juízo incompetente deve ser imediatamente remetida ao juízo competente, para que este faça o juízo quanto ao seu recebimento ou rejeição. Caso ignorada a competência, sendo proferida decisão nestes termos, deveria ser considerada nula – na medida em que, como dito, terá sido decidida por juízo incompetente (art. 564, I, CPP). Assim funcionam as regras de competência para todos os Tribunais criminais no Brasil. Mas, pelo visto, não para o Supremo Tribunal.

As regras processuais penais sofrem, nos últimos tempos, com as recentes decisões conflitantes e que ignoram princípios defendidos desde sua criação. A Lei, ao menos em tese, deveria valer para todos. Não pode o julgador, ao seu bel prazer, alterar as normas determinadas por Lei, jurisprudência e doutrina, para que satisfaça qualquer interesse – seja ele pessoal, processual ou de “celeridade”.

O processo penal, por lidar com o que há de mais caro ao cidadão – a liberdade! – deve ser rigorosamente respeitado. Sua existência é o que garante a segurança jurídica necessária para o integral cumprimento da justiça. Aos atuantes – Ministério Público, Advogados e Julgadores – resta seguir, a risca, suas regras e lutar, incansavelmente, por sua indiscriminada aplicação.